Em sua 32ª edição, a Alegrar publica a terceira parte do Dossiê tramas, fragmentos, cartas.

Marguerite Duras (2021) nos diz ser impossível escrever sem a força do corpo.  A escrita é um fluxo que passa pelo corpo. “Atravessa-o” (p. 91).[1] Ela nos diz ainda que em torno de nós tudo escreve. Não apenas o sujeito-autor visto, muitas vezes, como o único responsável pela função de fazer brotar palavras na tela ou no papel. Um objeto, em um número de malabares, tece poemas no ar com seu corpo. Um mosquito inscreve seus desejos de sangue com seu voo e zunido impertinentes. A lua pinta de luz o céu, às vezes de forma efusiva, em outras muito delicadamente. Uma pichação nas paredes de um banheiro público aponta vontades inconfessáveis.

Bernardo Carvalho (2020) diz que a literatura (a escrita) se esforça para criar “um entendimento do mundo para além do lugar onde o mundo é inteligível” (p. 77).[2] Ali, onde é difícil o entendimento, onde a incomunicabilidade está posta, é que a literatura (a escrita) se constrói. Não se escreve para comunicar o sabido, mas para sentir a incompreensão, a desmesura, o estado expandido, impreciso, frágil, inconsistente, das coisas.

No início do primeiro semestre de 2022, lançamos um convite público para publicação na 30ª edição da revista Alegrar:

Escreve-se com celulares, livros, cadernos, guardanapos, diários. Escreve-se entre as redes, os computadores, os papéis sobre escrivaninhas, as folhas miúdas autoadesivas. Nas paredes, nos blocos de anotações, nos muros. Nas carteiras escolares, nas revistas, nos aplicativos de mensagens instantâneas, nas notas fiscais, nas folhas de jornais. Textos breves, inacabados, soltos. Somos as palavras, como afirma Virginia Woolf.[3] Morais, imorais, amorais. Pintadas, grafadas, legíveis, ilegíveis, desenhadas em corpos tomados pelos tremores do risco e que amanhã já não serão possíveis. A escrita narra a si mesma nas tramas, em fragmentos, nos esboços das cartas mais ou menos breves, nos bilhetes. Na mensagem de amor, no poema impublicável e na carta que jamais viajará. Em suma, a escrita trama seu próprio diário, sua autobiografia.

A Revista Alegrar convida às múltiplas composições. Cartas, escritas breves, ensaios, artigos, entrevistas, prosa, poesia, imagens, e, e, e… Escritas escondidas, incertas, desconexas. Composições despretensiosas, enlaces de vida. Um convite às escritas do dia, da noite, escritas endereçadas a alguém ou a ninguém, escritas-afeto em telas, papéis, sonhos, palavras por vir.

Recebemos proposições as mais diversas, vindas de vários locais do país e também de outros países, com um vasto universo de atravessamentos: artigos, ensaios, contos, crônicas, poemas, ensaios visuais, audiovisuais, sonoros, bordados, colagens, cartas, desenhos, pinturas… Decidimos distribuir as proposições selecionadas em três publicações. Em dezembro de 2022, publicamos a 30ª edição com a primeira parte do dossiê, seguida da segunda parte, publicada na edição 31, em julho de 2023. Nesta 32ª edição de dezembro de 2023 publicamos a terceira e última parte do dossiê tramas, fragmentos, cartas, com onze proposições.

Este dossiê pensa as cartas como escritas fragmentárias que podem extraviar, rasgar, se perder, serem mal-entendidas, ferir. Uma carta talvez esteja sempre repleta de lacunas e vulnerabilidades. Como diz Ana Kiffer (2017)[4], as cartas nos dão a ver experiências liminares. A pesquisadora argumenta, com Antonin Artaud, que as cartas não contam nada, nem explicam a vida. Elas abordam o inabordável, encetam o invisível. Estão situadas, todas elas, quem sabe, em uma zona de indeterminação.

Nesta edição, temos quatro artigos de demanda contínua diversos e instigantes. 

Carta à professora e ao professor que estão por vir…, escrita por Gilberto Silva dos Santos e Virgínia Crivellaro Sanchotene, atravessa passagens entre escola e universidade públicas. Pergunta por (des)aprendizagens “ao caminhar entre classes e pó de giz e matemáticas e educações e inclusões e…” Pergunta pelos efeitos e ventos que possam “agitar os (não) saberes”, pelas “potências das lágrimas e dos medos”, pelo que faz chorar e faz sorrir. Pelo que difere e varia em educação e matemática.

O artigo Mulher, preta, antirracista e doutoranda: devir-outra que move desejos e potências, de Hélen de Oliveira Soares Jardim, aborda “as artes de existir e resistir de um modo afro. Vidas de uma mulher que se reconhece negra e envolvida na luta antirracista, nos lugares por ela ocupados e nos encontros e desencontros com tantos outros/as e outres”. A filha de Oyá nos conta de movimentos e tantos encontros, entre terreiros, universidades…  Engajada “na construção de uma sociedade antissexista e antirracista em ressonâncias de vozes com outras mulheres negras de terreiro”.

Em Revolta Tibira: uma carta ético-erótica à bell hooks, Rodrigo de Oliveira Feitosa Vaz nos conta como conheceu bell hooks, em uma tarde em São Paulo, através de uma amiga negra, que levou para o encontro o livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Com a leitura de bell hooks, Rodrigo Vaz narra que foi “transportade a episódios escolares que seguem muito doloridos aqui, sendo difícil seguir adiante… Esse texto versa sobre nossas tentativas de nomear a dor e teorizar a partir da experiência vivida em ambientes escolares (hooks, 2018). Pude ser testemunha e também partilhei com essas crianças o desejo de que a dor advinda de determinadas opressões fosse embora”. A carta finaliza com a apresentação do Coletivo Tibira.

Contrarreforma Psiquiátrica: quem dera fosse mito, artigo de Isaque Telles Quinteiro, Duilia Sedrês Carvalho Lemos e Moisés José de Melo Alves, busca a “subversão do sentimento de impotência perante os constantes ataques à Reforma Psiquiátrica Brasileira e à Luta Antimanicomial, no sentido de possibilitar reflexões críticas à sociedade brasileira e o incremento de movimentos de resistência”. Utiliza-se de uma investigação acerca do tema, que indica os modos como se operacionalizou a precarização dos serviços de saúde mental no Brasil e os investimentos em “instituições privadas e violadoras de direitos”.

Desejamos boas leituras!

Juliana Gisi, Kátia Kasper, Leandro Belinaso

Pela equipe editorial


[1] DURAS, Marguerite. Escrever. Tradução: Luciane Guimarães de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2021.

[2] CARVALHO, Bernardo. A literatura como ferramenta para alargar o mundo. In: VIEL, Ricardo (Org.). Sobre a ficção: conversas com romancistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

[3] WOOLF, Virginia. Um esboço do passado. Tradução: Ana Carolina Mesquita. São Paulo: Nós, 2020.

[4] KIFFER, Ana. Estou como que sobre cartas e extravios. Remate de Males, Campinas-SP, v. 37, n. 2, p. 547-557, jul./dez. 2017.