Da alegria de ler e escrever
Prezadas Editoras,
Tendo sido informada da linha editorial da revista eletrônica Alegrar, da posição que assume frente às possibilidades produtivas e criativas nas relações com o mundo, inscrevendo modos particulares de construção dessas relações, entre estes uma politização da alegria, escrevo-lhes para compartilhar algumas situações que tenho vivido nas trilhas da leitura e da escrita.
Desde há muito deixei de vê-los, os atos de ler e escrever, como limitação ou problema. Digo isso como professora alfabetizadora, trabalhando com crianças iniciantes na linguagem escrita, durante alguns anos, na escola pública, e como coordenadora do Projeto de Educação de Jovens e Adultos, no campus da UNESP-Rio Claro. Destes lugares, tenho podido acompanhar processos singulares de construção da leitura e da escrita, que muito nos sensibiliza para a tensão criadora que os sujeitos envolvidos, crianças ou adultos, demarcam nos seus fazeres escriturários, enquanto aprendizes que são.
No cotidiano, o ato de ler e de escrever acabam ocorrendo. Bonito, competente, insano, habilidoso, tardio, precoce, rasgando ou deixando fortes sulcos no caderno, desenhando riscos rabiscos ou imagens, fazendo-nos alçar vôo até o arco-íris pelo poder da poesia, fazendo sujeitos se perderem ou promovendo encontros, na racionalidade, cercados pelos limites caligráficos, ou na liberdade da invenção, eles ocorrem.
De um jeito ou de outro o ato de ler e o ato de escrever, ocorrem. Ocorrem nas suas diferenças, nas diferenças que ficam manifestas, nas diferenças que estão nas origens deles mesmos, ou dos suportes que lhes dão sustentação, do que assuntam ou do que divulgam aos quatro ventos. Ocorrem nas diferenças de quem os realiza e no modo como os realiza.
Das situações que tenho presenciado, Caras Editoras, merece um destaque particular a escrita de cartas por quem ainda vai tateando na escrita. São alunas em classes de alfabetização de adultos que escrevem a pessoas que se encontram distantes; são parentes, filha, afilhada, amiga. Minha intenção ao lhes dar conhecimento de alguns trechos dessas cartas é compartilhar um pouco de meus espantos, de minhas inquietudes e, por que não dizer, do estado de alegria que me desperta a leitura dessas cartas, quando a elas tenho acesso.
É o caso de D. Ângela [1], ao escrever aos sobrinhos, dizendo que (…) é com muita saudade que escrevo para vocês, dando nossas notícias, espero que estas carta ao chegar em suas mãos, encontre todos com a mais perfeita saúde e felicidade, como todos da família (…)
Ou D. Juvência [2] que escreve à afilhada (…) com muito praser que eu pego na minha pena para li escrever esta duas linha para dar aminha notiça que até u faser desta ficamos todos gosando amais perfeita saúde Paçamos um ótimo natau manda medizer com o (…)
Ou D. Antônia que escreve à Tata que (…) o Cloves está estudando na quinta série, Tata eu estou aprendendo muita coisa Tata eu que escrevi (…)
Ou D. Josefa [3] que escreve à filha dizendo que (…) vou escreva quero dar as minhas noticias até ofaer essas pocas linha saber as de vocês gomo vai todos daí dezejo saber tudo que sipaça façu questam (…)
E, ainda, D. Marta [4], que numa carta longa diz aos filhos da saudade dos encontros, do papo que ficou distante, no tempo e no espaço, e… do tanto que está adorando a escola e aprendendo.
Tais leituras deixam-me num estado de alegria, Prezadas Editoras, porque essas pessoas, neste caso, mulheres, adultas, com idade que varia de 32 a 56 anos, e que ainda se encontram em estágios iniciais da linguagem escrita, como escreve D. Linda [5] para Almerinda e diz que está (…) na escola pelejando paraler e escrever (…), expressam alegria elas próprias, em palavras e gestos, que ficam registrados no papel, como escreve D. Rosa [6] à amiga (…) mando está e para você ver a minha letra como esta se você achar que não esta Boa eu vou para mais não posso parar vou tentar aprender mais um pouco quem não arisqua não pitisca (…).
Ao expressar alegria, pelejando para ler e escrever, com letra nem tão bonita assim, essas mulheres compartilham admirável coragem na relação que constroem com o mundo, do qual são parte integrante marcada pela diferença (pela competência que falta? pelo domínio da escrita que (ainda) não têm?), no atual momento histórico em que vivemos. Dão-nos, certamente, uma lição de escrita que é plena de vida!
Desejo-lhes sucesso na empreitada que iniciam.
Cordialmente,
Maria Rosa R. Martins de Camargo
*Maria Rosa R. Martins de Camargo é professora do Departamento de Educação – IB – UNESP.