Crueldade e inocência: novos valores para um novo pensamento

Cíntia Vieira da Silva

Este artigo procura colocar alguns trechos da obra nietzscheana em conexão com outros autores (como Artaud e Clarice Lispector) para tentar desenvolver um tema que foi colhido na filosofia de Gilles Deleuze: a idéia de um sistema da crueldade como possibilidade de escapar a todo e qualquer sistema de organização por transcendência.

Esta apresentação do sistema da crueldade tem o intuito de mostrar como tal idéia surge não apenas no âmbito de um combate contra a moralização do pensamento, mas também faz parte de um esforço para construir uma ontologia da diferença ou pensamento em imanência para com o real (que seja, por sua vez, um pensamento da imanência do real). Dar ênfase a esta articulação permite mostrar que a idéia de crueldade não se coloca a serviço de um mero elogio à violência ou à ausência de delicadeza nas trocas entre indivíduos.

A idéia de um sistema da crueldade acaba por delinear um modelo a partir do qual se critica o sistema do julgamento (ou filosofias da representação, segundo o texto deleuzeano que escolhermos analisar) e nossa hipótese é de que todo seu alcance é compreendido apenas na medida em que ela é inserida num esforço construtivo e conectada à inocência. Aliás, este termo nos parece preferível ao de crueldade, por se prestar a menos equívocos, contudo, não nos parece possível descartar de imediato o termo anterior, crueldade, já que é largamente empregado pelos autores convocados por Deleuze, bem como por ele mesmo, o que leva a pensar que a possibilidade de equívocos tenha sido encarada por eles, e mesmo desejada, num certo desejo de instaurar a polêmica. Se escolhemos, no entanto, apresentar tal idéia em conexão com a de inocência e no contexto da criação de uma filosofia da diferenciação ou de uma ontologia do devir foi justamente para abordá-la de um ângulo em que ela nos parece mais profunda, não para neutralizá-la ou torná-la menos ofensiva.