Editorial 30
Editorial – tramas, fragmentos, cartas
Marguerite Duras (2021) nos diz ser impossível escrever sem a força do corpo. A escrita é um fluxo que passa pelo corpo. “Atravessa-o” (p. 91). Ela nos diz ainda que em torno de nós tudo escreve. Não apenas o sujeito-autor visto, muitas vezes, como o único responsável pela função de fazer brotar palavras na tela ou no papel. Um objeto, em um número de malabares, tece poemas no ar com seu corpo. Um mosquito inscreve seus desejos de sangue com seu voo e zunido impertinentes. A lua pinta de luz o céu, às vezes de forma efusiva, em outras muito delicadamente. Uma pichação nas paredes de um banheiro público aponta vontades inconfessáveis.
Bernardo Carvalho (2020) diz que a literatura (a escrita) se esforça para criar “um entendimento do mundo para além do lugar onde o mundo é inteligível” (p. 77). Ali, onde é difícil o entendimento, onde a incomunicabilidade está posta, é que a literatura (a escrita) se constrói. Não se escreve para comunicar o sabido, mas para sentir a incompreensão, a desmesura, o estado expandido, impreciso, frágil, inconsistente, das coisas.
No início do primeiro semestre de 2022, lançamos um convite público para publicação nessa 30ª edição da revista Alegrar:
Escreve-se com celulares, livros, cadernos, guardanapos, diários. Escreve-se entre as redes, os computadores, os papéis sobre escrivaninhas, as folhas miúdas autoadesivas. Nas paredes, nos blocos de anotações, nos muros. Nas carteiras escolares, nas revistas, nos aplicativos de mensagens instantâneas, nas notas fiscais, nas folhas de jornais. Textos breves, inacabados, soltos. Somos as palavras, como afirma Virginia Woolf[1]. Morais, imorais, amorais. Pintadas, grafadas, legíveis, ilegíveis, desenhadas em corpos tomados pelos tremores do risco e que amanhã já não serão possíveis. A escrita narra a si mesma nas tramas, em fragmentos, nos esboços das cartas mais ou menos breves, nos bilhetes. Na mensagem de amor, no poema impublicável e na carta que jamais viajará. Em suma, a escrita trama seu próprio diário, sua autobiografia.
A Revista Alegrar convida às múltiplas composições. Cartas, escritas breves, ensaios, artigos, entrevistas, prosa, poesia, imagens, e, e, e… Escritas escondidas, incertas, desconexas. Composições despretensiosas, enlaces de vida. Um convite às escritas do dia, da noite, escritas endereçadas a alguém ou a ninguém, escritas-afeto em telas, papéis, sonhos, palavras por vir.
Completamos a 30ª edição nesse dezembro de 2022, com o dossiê tramas, fragmentos, cartas, composto por algumas das respostas ao convite para publicação. Recebemos proposições as mais diversas, vindas de vários locais do país e também de outros países, com um vasto universo de atravessamentos: artigos, ensaios, contos, crônicas, poemas, ensaios visuais, audiovisuais, sonoros, bordados, colagens, cartas, desenhos, pinturas… Decidimos selecionar dezesseis para essa edição de 2022 e outras tantas para edições de 2023.
Este dossiê pensa as cartas como escritas fragmentárias que podem extraviar, rasgar, se perder, serem mal-entendidas, ferir. Uma carta talvez esteja sempre repleta de lacunas e vulnerabilidades. Como diz Ana Kiffer (2017), as cartas nos dão a ver experiências liminares. A pesquisadora argumenta, com Antonin Artaud, que as cartas não contam nada, nem explicam a vida. Elas abordam o inabordável, encetam o invisível. Estão situadas, todas elas, quem sabe, em uma zona de indeterminação.
Desejamos boas leituras!
Juliana Gisi, Kátia Kasper, Leandro Belinaso
Pela equipe editorial
Referências:
CARVALHO, Bernardo. A literatura como ferramenta para alargar o mundo. In: VIEL, Ricardo (Org.). Sobre a ficção: conversas com romancistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
DURAS, Marguerite. Escrever. Tradução: Luciane Guimarães de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2021.
KIFFER, Ana. Estou como que sobre cartas e extravios.Remate de Males, Campinas-SP, v. 37, n. 2, p. 547-557, jul./dez. 2017.
WOOLF, Virginia. Um esboço do passado. Tradução: Ana Carolina Mesquita. São Paulo: Nós, 2020.
[1] WOOLF, Virginia. Um esboço do passado. Tradução: Ana Carolina Mesquita. São Paulo: Nós, 2020.